quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O ofício

Silêncio. Após um dia corrido e abafado dentro do carro do jornal, com um motorista falante, conversas boas e duradouras, pauta na favela, cara feia de alheios no retorno à redação, eu estava indo embora para a minha casa, a uma hora do fim daquele dia, com um motorista quieto. Algo incomum. Quando o mesário o chamou, pensei: “ele tem o mesmo nome que o porteiro do meu prédio”. Cheguei a pensar que ele seria um dos novatos que entrou agora para o time dos responsáveis pelo sucesso ou fracasso de uma matéria. Nunca tinha o visto. Ou não o estava reconhecendo. Sou péssima para guardar nomes e faço um esforço tremendo para isso.

Ele me perguntou por qual caminho iríamos. Mais silêncio. E ele corria. Trocava de marcha grosseiramente. Freava e me provocava leves bufadas por ter sido jogada para frente do painel. E a viagem demorava mais que o normal. Com um dos motoristas falantes, o percurso duraria 40 minutos. Mas com aquele, não. O rádio estava sintonizado em uma emissora de músicas calminhas, no estilo Antena 1. Gosto disso. Pergunta rápida: “Pego a saída do Extra Anchieta?”. Minha resposta: “Não, pega aquela do pontilhão de Piraporinha”. Mais silêncio. Assim que pegamos a Avenida Lucas Nogueira Garcez, lembrei do motorista Ramos, que certa vez me levou para um hospital ali perto por conta de uma intoxicação alimentar. Acho que nunca tinha sentido tanta dor de estômago na vida. E ele corria com um leve desespero de me ajudar. E ajudou. Lembrança passada, comecei a orientar o motorista quieto sobre as coordenadas até a minha casa. “Agora você vira na próxima direita.” “Na rua da delegacia?” “É, lá mesmo. Você conhece aqui? Já tinha vindo para cá?” “Conheço, já vim muito nessa delegacia. Eu era do plantão da madrugada.” E é ai que o silêncio dos tantos outros minutos da viagem se encerra.

Ele começou a me contar a sua história nos plantões da madrugada. Começamos a trocar figurinhas. “Ah, você conhece o fulano?” “Pô, conheço, trabalhei com ele” “Ah, eu não conheço, mas o cara é bom!” Até que, de repente, ele mostrou a sua decepção com o fim dos plantões noturnos. Com o fim de jornais como o grande Diário Popular. Sim, porque o Dipo morreu. Não me venha dizer que hoje ele é o Diário de S. Paulo. Concordamos juntos. Afinal, não existe vida de madrugada? E ele começou a contar histórias de personagens conseguidos na madrugada, perfis ótimos que não seriam encontrados enquanto o Sol estivesse a pino. E eu confessei: “Acho que o jornalismo hoje está insosso”. E ele, nostálgico, concordou comigo. Quase juntos, dissemos que algumas coisas são publicadas sem tanto mérito para tal. Coberturas ralas, apurações superficiais. Até que ele disse que época boa era quando o repórter não tinha tantas interferências para fazer seu trabalho.

Ele me mostrou com orgulho o seu já aposentado rádio, que há alguns anos conseguia captar a freqüência das polícias Militar e Civil. Hoje em dia, com muito custo, pega só a do Corpo de Bombeiros. E era com aquela ferramenta que os repórteres conseguiam fazer coisas extraordinárias, que enchiam os olhos dos leitores. Hoje, não. Hoje existem tantos filtros, tantas influências, que o texto é quase pré-fabricado. Sim, ainda existem os honestos que vão ao local, apuram, conversam, desconfiam, perguntam de novo para deixar seu trabalho o mais bem feito possível. E foi nesses últimos 10 minutos de viagem que eu parei para pensar no futuro do meu ofício. O que tantas pessoas estão fazendo com ele? O que é Jornalismo para elas? Ou o contrário, o que é esse jornalismo (em caixa baixa mesmo) para mim? Às vezes sinto falta de reinvenções. Nem sei se essa palavra existe, se não, me perdoem pelo neologismo. Mas o que está sendo feito para prender as atenções cada vez mais dispersas? Não sei. Pode ser uma impressão, e espero que seja, assim como espero estar errada, do fundo do meu coração, mas o que dá audiência, não no sentido de qualidade, mas no pejorativo de quantidade, atualmente é a burrice, é o que não faz refletir. De qualquer forma, não podemos reclamar da falta de pessoas interessadas, sim, em mudar isso. Mas, por uma lógica que eu não consigo entender, não existe espaço para esses. Talvez porque todos já estejam tão condicionados a consumir informação digerida que lhes parece antiquado nos dias de hoje parar para pensar.